Casos e causos
de um juiz do interior

Casos e causos de um juiz do interior
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O caso das galinhas

Moravam na cidade, um judeu originário da Europa Central chamado Bernardo e um italiano chamado Pepino, em casas geminadas. O judeu criava galinhas em seu quintal e o italiano plantou uma horta destinada a suprir sua casa de verduras.

De vez em quando, as galinhas passavam pelo muro que separava as moradias e não era muito alto, e quando isto ocorria comiam plantações da horta.

Sempre que havia este fato, o italiano pegava as galinhas e levava para o judeu, reclamando e sempre dizendo que se isso não parasse, iria tomar uma providência.

O judeu nunca evitou que suas galinhas saltassem o muro, onde se deliciavam com as verduras sempre frescas, o que provocava a ira do italiano que voltava a repetir as ameaças, dizendo:"Bizinho, bizinho, eu um dia tomo uma providencia."

Um dia, não suportando mais a investida das galinhas, passou a pegá-las, quebrar uma de suas pernas e jogar no quintal do judeu.

Diante da atitude do italiano, o judeu pegou uma das galinhas com a perna quebrada e foi tomar satisfações com seu vizinho.

O judeu reclamava em altos brados, com seu sotaque característico e dizendo que a atitude de seu vizinho lhe causara um grande prejuízo.

O italiano retrucou dizendo no mesmo tom com, seu sotaque típico do italiano que o que fizera visava unicamente acabar com as investidas dos galináceos em sua horta e o fato não ocasionava nenhum prejuízo, pois dizia ele: "Bizinho, você quer galinha pra comer ou pra jogar futebol?"

Máquina de matar formiga

Estava despachando os processos pela manhã, no Fórum da comarca de Tombos, na companhia do Dr. Nuno Alves Martins, o Promotor, quando um oficial de justiça entrou no gabinete dizendo que uma pessoa queria falar comigo. Mandei que ela entrasse e ali penetrou um homem de meia-idade portando um embrulho de jornal, com aparência de fazendeiro.

Dizia ele que queria fazer uma reclamação ao juiz, pois afirmava que havia sido enganado. É comum, nas cidades do interior, pessoas que se sentem prejudicadas procurarem os magistrados para levar suas reclamações. Disse a ele que se colocasse à vontade e me informasse qual o motivo de sua ida ao meu gabinete, pois sempre procurei atender as pessoas aflitas que me procuravam.

De forma humilde e muito aborrecido, dizia ele que havia muitos formigueiros em sua fazenda, e que lera um anúncio no Jornal do Brasil, informando sobre uma máquina infalível de matar formigas, e em seguida abriu o embrulho que trazia consigo e exibiu dois pedaços de madeira em forma de tijolo, e uma instrução impressa que informava que se colocasse as formigas em cima de um dos pedaços e batesse com o outro, elas certamente morreriam. Dizia ele de forma chorosa: ."Eu fui enganado e quero que o senhor tome uma providência contra o Jornal do Brasil". O Promotor, que era muito engraçado, começou a rir e disse ao frustrado matador de formigas: "O senhor não pode reclamar, pois, como diz o anúncio, se usar dentro das instruções, as formigas morrerão". Não pude esconder o inusitado da situação e, não querendo deixar constrangido àquele que, na verdade, fora vítima de um autêntico conto do vigário, mas sem condições de reparar o prejuízo, limitei-me a consolá-lo e adverti-lo para que não comprasse nada que não pudesse identificar a pessoa do vendedor.

O amor de Margot

Pantaleone era um italiano que vencera na vida empresarial, por isso mesmo gozava de grande prestígio na cidade e ganhara fama de "coronel" junto às mulheres da chamada vida fácil. Dentre elas havia uma mulher dotada de grande beleza, chamava Margot, pela qual o "conquistador" caíra de amores.

Entre aqueles que freqüentavam o local da boêmia da cidade, destacava-se um rapaz de boa família, que jogava futebol num dos principais clubes da cidade, chamado Pereirinha, e que gozava de indiscutível prestígio com Margot.

Quando Pantaleone falava de suas aventuras amorosas com a diva da chamada vida fácil, a dizer para todos do amor dela para com ele, alguns duvidavam de suas afirmações e começaram a alertá-lo pelas investidas de Pereirinha junto à sua amada.

Ele afirmava, em alto e bom som, que Margot só gostava dele e, para provar suas convicções amorosas, costumava pegar o telefone e ligar para ela, dizendo com o característico sotaque carregado dos filhos da Península Adriática: "Alô! Aqui é o Bererinha, e queria encontrar com você." E a sabidona, percebendo quem estava telefonando respondia indignada:

"Pereirinha, vê se não telefona para mim, pois você sabe muito bem que eu gosto mesmo é do Pantaleone." E ele, feliz, dizia para aqueles que estavam ouvindo o telefonema: "Bererinha um...! Margot gosta é de Bandaleone."

O italiano "Comendador"

Pantaleone era um grande empresário natural da Itália, e aqui aportara como imigrante, conseguindo, por obra e graça de seu trabalho e de sua inteligência, erguer uma grande firma industrial e construtora.

Na década de 30, o governo italiano passou a agraciar os seus filhos que se destacavam no exterior com títulos nobiliárquicos e Pantaleone recebeu do Rei da Itália o título de Cavalheiro do Império Italiano, e exibia-o com o natural orgulho de quem, imigrante que chegara a terra estranha praticamente sem nada, amealhara considerável fortuna e grande prestígio social na comunidade que o acolhera. Por isso, quando alguém o cumprimentava chamando pelo nome, dizia: "Bandaleone nom, Cavalhieri do Império Italiano, com muita honra".

Posteriormente, ainda devido ao grande prestígio conseguido, Pantaleone foi agraciado com o título de Comendador do Império Italiano, e quando as pessoas que o cumprimentavam chamando-o de Cavalheiro, fazia imediata correção, dizendo: "Cavalhieri nom, io sono Comendadore do Império Italiano, com muta honra". Logo depois explodiu a Segunda Guerra Mundial, e quando o Brasil entrou na guerra, os italianos tomavam precauções para não serem molestados pelos mais exaltados nacionalistas. Pantaleone também se cuidava e freqüentemente fazia alusões ao seu amor pela pátria que tão bem o acolhera, já que há muito havia se naturalizado brasileiro. Mas não escapava da brincadeira de alguns que, ao passarem perto de seu estabelecimento comercial, onde costumava ficar conversando com amigos, o chamavam: "Olá, Comendador". E ele imediatamente corrigia: "Comendadore nom, io sono cidadon brasileiro e com muita honra". E, cruzando os braços, dava uma bela banana para a pessoa que com ele havia brincado.

Eta dobrado bom

O Coronel Chico Borba havia sido Prefeito nomeado de Tombos no tempo da ditadura de Getúlio Vargas e, após deixado o cargo, na condição de ex-alcaide do município, era convidado para participar das comemorações cívicas que eram realizadas nas datas festivas da nacionalidade.

Como bom cidadão a elas comparecia invariavelmente e, numa certa ocasião, após tocar o hino nacional, disse para o jovem Juiz que há pouco havia chegado à cidade: "Doutor, eta dobrado bom!" E o magistrado, que não sabia do atraso e do estilo simplório do Coronel Chico, o corrigiu, dizendo: "Não, Coronel, não é um dobrado, é o hino naciona1." Aí o Coronel respondeu-lhe: "Doutor, pode ser hino nacional, mas que é um dobrado bom é, né?".

Colisão de automóveis

Presidia uma audiência de uma ação de indenização oriunda de uma colisão de automóveis, em que o réu, depois de ter sido citado, apresentou reconvenção, imputando ao autor a culpa pelo acidente, e postulando, tanto quanto o suplicante, o recebimento dos danos decorrentes do evento danoso.

Os veículos colidiram frontalmente, o que dificultava a apuração do responsável pela ocorrência do fato.

O Dr. Francisco, homem simplório e não muito afeito às letras jurídicas, era conhecido pelas inusitadas perguntas que costumava fazer às testemunhas, quando das suas inquirições. No curso da audiência, quando foi lhe dada a palavra para fazer perguntas a uma das testemunhas, solicitou-me que perguntasse ao depoente "qual dos automóveis que tinha batido primeiro". Disse-lhe que não poderia fazer tal pergunta, porque se a batida fora frontal, a pergunta era absolutamente impertinente. O Dr. Francisco não perdeu a calma, e de maneira delicada e educada, como era sua maneira de proceder nas audiências, reiterou a pergunta, dizendo: "Doutor, eu quero saber quem bateu em primeiro lugar porque só assim meu cliente pode ganhar a demanda".

O passeio do gado

O Dr. Manoel era um advogado com grande experiência que desfrutava de grande prestígio na comarca e, em decorrência de expressivo conceito profissional, possuía uma grande clientela, principalmente entre os fazendeiros do lugar. Demanda que versava sobre interesse dos proprietários rurais, tinha sempre em um dos pólos da lide o Dr. Manoel.

Em ação de indenização promovida por um proprietário contra um seu vizinho, era o Dr. Manoel o advogado do réu.

O autor, ao propor a ação, argüiu que o réu não tomara os necessários cuidados impostos pelo direito de vizinhança, para impedir que seu gado invadisse uma plantação de milho em sua propriedade, o que acarretou danos irreparáveis à referida plantação. Argüiu ainda que o motivo da invasão foi a precária manutenção da cerca divisória entre as duas propriedades, que não foram bem cuidadas pelo proprietário do gado.

Na defesa apresentada, o Dr. Manoel, de forma veemente e categórica, negou que o gado tivesse invadido o terreno do autor e por isso mesmo, sustentou a total improcedência do pedido indenizatório.

Marcada a audiência de instrução e julgamento, foram tomados os depoimentos pessoais do autor e do réu. O primeiro sustentou a alegada invasão e que esse fato acarretara os danos que pretendia fossem ressarcidos pelo réu.

O réu, após ser cientificado do que fora alegado na peça inicial, respondeu: "Não, Doutor, não houve nenhuma invasão do gado, o que aconteceu foi um pequeno passeio das reses no milharal, mas sem acarretar dano algum à plantação". Diante do que dissera seu cliente, o Dr. Manoel, que se caracterizava por um bom humor constante, deu uma gargalhada e, pedindo a palavra, requereu a suspensão da audiência ao fundamento de que diante do depoimento de seu cliente não lhe restava alternativa senão convencê-lo que o "passeio" por ele argüido impunha-lhe a obrigação de pagar pelos danos causados ao milharal de seu vizinho.

Calças curtas

Pepino era um italiano que gabava de não atender sua mulher, e dizia que ele fazia o que queria e não dava satisfação a ninguém, muita menos a Rosalina, sua esposa e italiana de forte personalidade.

Nas comemorações das bodas de ouro de tios da Rosalina, Pepino estava bebendo com um grupo de amigos e sempre que podia, exaltava suas qualidades de homem que não dava satisfações à mulher, terminando sempre suas gabolices afirmando: "Lá em casa quem manda son las calças".

Com o adiantado da hora, Rosalina começou a chamar Pepino para ir embora e ele, sorrindo, dizia que iria "daqui a pouco".

Como Pepino não estava atendendo ao chamado, Rosalina se aborreceu e, de forma ríspida e incisiva, chamou-o para irem embora. Diante da forma com que a esposa chamava, Pepino não teve alternativa senão atender, o que provocou uma gozação geral, uns gozando a pronta obediência e outros a lhe dizer: "Como é, Pepino, você não disse que na sua casa quem mandava eram as calças?" E ele, com seu jeitão de italiano desapontado, explicava: "Io disse que lá em casa quem manda son las calças, mas esqueci de explicar que son las calças curtas".

A tentativa de morte de um caminhão

O Dr. Ivan, profissional que ganhara grande notoriedade como advogado de júri, defendia um cliente que estava sendo acusado de tentativa de homicídio pelo Dr. Nuno, eficiente Promotor de Justiça da comarca e que, nos júris, sempre travava com o citado causídico grandes discussões.

O réu, em seu depoimento, alegou em sua defesa que atirara contra a vítima, sem, no entanto, desejar a sua morte.

Na audiência de inquirição das testemunhas, depois de ouvidas aquelas arroladas pela acusação, que informaram que o réu dera dois tiros que não atingiram a vítima, passei a ouvir as testemunhas da defesa.

A primeira após ser advertida do dever e da obrigação de "dizer a verdade", após ser devidamente compromissada, inquirida sobre o fato delituoso, isto é, os disparos feitos pelo réu contra a vítima, respondeu: "Não, Doutor, ele estava nervoso com a bateria do seu caminhão, por isso atirou contra o veículo e não contra a vítima". Diante da afirmação, que não encontrava nenhum suporte dentro da prova e das próprias palavras do acusado, fiz-lhe uma severa advertência e disse-lhe que o depoimento estava sendo feito após o compromisso legal, e que se houvesse falsa afirmação, isso poderia redundar em processo por falso testemunho. O depoente, face minha reação à "estória" por ele criada, virou para o advogado e disse: "Viu, Dr. Ivan, eu não disse que a mentira que o senhor me ensinou não seria aceita pelo Dr. Juiz?" A constrangedora situação, com o advogado visivelmente desapontado, foi contornada pelo irônico Dr. Nuno, que disse: "Perdoa-o, Dr. Ivan, porque ele não sabe o que diz".

A panela do macarrão

Por ocasião do alistamento eleitoral que se realizou em 1958, quando foram criados os títulos eleitorais com retrato, os títulos anteriores perderam a validade e os eleitores foram obrigados a se alistarem novamente.

Para incentivar o alistamento, principalmente na zona rural, passei a deslocar o cartório eleitoral, acompanhado de um retratista, para os distritos e povoados existentes na comarca, aproveitando os domingos em que o Padre Cipriano, um espanhol muito engraçado, ia rezar a missa.

Antes das missas os eleitores preenchiam o requerimento e tiravam o retrato e, no encerramento delas, havia a entrega imediata dos novos títulos eleitorais. Tal sistema proporcionou uma aceleração acentuada no alistamento, e era comum, na hora do almoço, um dos fazendeiros da localidade convidar o Juiz e o Pároco para almoçarem com sua família.

Eram almoços muito fartos e saborosos, e quase sempre havia a indispensável macarronada dominical, com frango assado, tutu de feijão e um bom pedaço de lombo assado de porco.

Num distrito em que realizávamos o alistamento eleitoral, após devidamente convidados, fomos o Padre Cipriano e eu almoçar na casa de um fazendeiro.

Ao chegarmos ao local do almoço, verifiquei que o Pároco era muito íntimo da família e demonstrava conhecer muito bem todos que ali residiam, pela forma alegre e descontraída como ali foi recebido.

Após um pequeno e alegre período de conversa, fomos chamados para sentar à mesa, junto com familiares do dono, e logo em seguida sua esposa trouxe uma bandeja funda com uma fumegante macarronada.

Quando as pessoas começaram a ser servidas pela dona da casa, o Padre Cipriano, com sotaque que o caracterizava, disse: "Dona Maria, por favor, para mim e para o Dr. Ayrton, serve o macarrão do meio, que é mais quentinho e mais gostoso, da beirada, não".

Como ele dava muita ênfase para que o macarrão fosse servido do meio da bandeja, ao voltarmos para Tombos, num Ford 29 que sempre nos conduzia, perguntei a ele porque a comida tinha que ser a do meio e não da beirada, e ele disse: "Ô, doutor, aquela bandeja alem de servir comida, serve também para dona Maria lavar a bunda quando vai dormir". Demonstrando o grande conhecimento que tinha ele dos hábitos familiares dos nossos anfitriões, bem como as preocupações do velho pároco.

A briga conjugal

Estava no meu gabinete numa das varas da assistência judiciária da Capital, quando o escrivão me disse que uma senhora queria falar comigo. Mandei entrar e uma pessoa de meia idade, mostrando indignação com o marido, dizia que não suportava mais viver com ele por isso mesmo queria dele se desquitar.

Diante da forma aflita com a qual se queixava da vida conjugal, providenciei junto ao Escrivão a indicação de um assistente judiciário para acudi-la.

Alguns dias depois o defensor nomeado ingressou com a petição de pedido de desquite litigioso, no qual informava, sem dar maiores detalhes, porque o marido tornara a vida a dois insuportável.

Na audiência de conciliação, os dois cônjuges sentados um ao lado do outro, passei a ouvi-los e os incentivei a colocar suas divergências de lado e a se reconciliarem, e perguntei à mulher a razão pela qual desejava a separação. Ela, muito nervosa, dizia que o marido estava gastando demais, inclusive o que ela ganhava, e informou que o que mais a revoltara era a compra de um carnê do Clube Atlético Mineiro, que ela não

aceitava de forma nenhuma. O marido, acuado pela acusação da esposa, de forma humilde falou: "Doutor, ela está aborrecida porque eu comprei carnê do Galo; se fosse do Cruzeiro, ela não se importaria". Diante da afirmação do marido, a mulher disse, bastante nervosa: "Claro, doutor, se fosse do Cruzeiro, eu não me importaria, mas do Galo, não, não e não". Propus, em face da situação existente, o cancelamento da compra do dito "carnê", com a conseqüente desistência da ação de desquite, que foi imediatamente aceita pelas partes.

Evaristo, o escrevente cuidadoso

Evaristo trabalhava como escrevente juramentado no cartório criminal da comarca, e era conhecido dos advogados que ali militavam como intrometido e abelhudo, porque constantemente, durante interrogatórios dos réus e depoimentos de testemunhas, gostava de colocar expressões e interjeições que não eram pertinentes, ou então, sublinhar parte dos depoimentos para chamar a atenção.

Tão logo assumi a comarca, fui alertado da forma como ele redigia os depoimentos que eram ditados pelo Juiz, o que me obrigou a alertá-lo para somente escrever o que eu ditasse e que não sublinhasse e nem colocasse em letra maiúscula qualquer coisa que eu ditasse. Em certa ocasião, disse-me ele que às vezes procedia daquela forma para chamar minha atenção na hora em que fosse estudar o processo para formar minha convicção. Na oportunidade, reiterei a ordem dada, para que ele reduzisse qualquer coisa que eu ditasse, da forma recomendada.

Logo depois estava ouvindo uma testemunha, quando falei: "Evaristo, coloque isto é entre vírgulas", e ele, atento e obediente à ordem que eu lhe havia dado, escreveu no texto que eu estava ditando "Evaristo, coloque isto é entre vírgulas". Como era meu costume observar a forma como o que eu ditava estava sendo escrito, falei que era apenas para colocar a expressão isto é entre duas vírgulas, ao que ele respondeu: "Doutor, eu escrevi exatamente como o senhor ditou, porque o senhor sabe que sou muito cuidadoso no serviço". Após a devida correção, não tive como senão concordar que realmente era ele muito cuidadoso nas suas funções.

O Júri do fazendeiro

Atendendo convocação do Presidente do Tribunal de Justiça, na condição de Juiz substituto da comarca de Miradouro, fui presidir uma sessão do Tribunal do Júri daquela comarca, por estar a mesma desprovida de magistrado titular.

Na pauta dos julgamentos havia um de um fazendeiro de uma importante família da localidade, de grande prestígio político, que estava sendo acusado de ter assassinado de forma cruel e violenta sua esposa, que era sua prima, e um empregado da sua fazenda.

A justificativa para o crime, segundo o acusado, era de que encontrara sua mulher mantendo relação sexual com o seu empregado.

No curso da instrução processual, após o exame no corpo da vítima, não foram encontrados sinais de esperma, o que, segundo a acusação, desmentia a versão do réu. Além do mais, a mulher, segundo as testemunhas arroladas pela Promotoria, mantinha conduta irrepreensível, apesar da reiteração do marido de que ela o estava traindo com o referido empregado.

No dia do julgamento, face às circunstâncias do crime e o grande prestígio das famílias envolvidas no processo, a cidade ficou muito agitada, com informações de que se o acusado saísse livre, os irmãos da vítima, que eram seus primos, o matariam na saída do Fórum, obrigando a montagem de um esquema especial de segurança que pudesse dar garantia, não só ao réu, como às demais pessoas que trabalhariam e participariam do Júri.

O Delegado Especial, destacado para dar segurança no local, tomou providências para o ingresso no salão do Júri, todas elas com o meu conhecimento e minha autorização, o que redundou em prisão para várias pessoas que foram encontradas armadas e que logo depois do término do julgamento, foram liberadas.

Nesse ambiente tenso e nervoso, foram instalados os trabalhos da sessão de julgamento, atuando na acusação o Promotor de justiça da comarca e um conhecido e famoso advogado de Belo Horizonte, Dr. Pedro, e na defesa um advogado conhecidíssimo na região, Dr. , com muita experiência profissional e grande prestígio, por suas atuações no Tribunal do Júri, conhecido por suas manifestações e apartes sempre bem postos e do agrado dos jurados.

Quando a acusação estava sendo feita pelo advogado contratado pela família da vítima, explicava ele a absoluta falta de provas da alegada infidelidade da mulher, que era, segundo suas palavras, uma pessoa de conduta sem mácula, e para demonstrar que não havia qualquer prova da alegada relação sexual entre as duas vítimas, dizia que a perícia realizada na mulher não encontrara nenhum sinal de esperma em sua vagina. O defensor, sentado em sua cadeira, falava como se dirigisse a ele próprio - e a camisinha? e a camisinha? O acusador particular mostrava-se visivelmente contrafeito e iniciou outra parte da acusação, sustentando com grande elegância e desenvoltura as lições de grandes juristas italianos, entre eles Manzini e Ferrara, em que se inspiraram os juristas brasileiros para elaborarem nossa legislação penal. Prosseguia ele na acusação dando ênfase à sua argumentação com base em reiteradas decisões dos Tribunais do País, que não consideravam como base para sustentar a defesa da honra, a circunstância de a mulher ser ou não fiel ao marido, salientando que a honra do homem não estava no meio das pernas de sua mulher.

Diante da forma incisiva com que a acusação era feita, o Dr. , sentado na cadeira destinada ao defensor, falando como se fosse um matuto, solicitou ao acusador licença para um aparte e disse: "Dr. Pedro, a lição de direito penal que o senhor está nos dando é muito bonita e pode ser pertinente para os homens da Capital os da cidade grande. Com nois aqui é diferente, mulher nossa deu, nois mata". A intervenção do advogado de defesa provocou uma gargalhada geral e deixou o grande advogado da capital completamente desnorteado e complicando definitivamente a acusação que fazia, a ponto de ele a terminar logo em seguida.

O inquilino pai-de-santo

Num processo de despejo por falta de pagamento, que teve curso na 2a. Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, da qual eu era titular, foi decretado o despejo do inquilino. Esgotado o prazo para o recurso, o autor da ação pediu que fosse expedido o mandado de despejo, por mim prontamente deferido.

O Oficial de Justiça lotado na Vara, Joaquim Gonçalves, dias depois entrou no meu gabinete e informou-me que o inquilino despejado estava resistindo à ordem, e disse-me ainda que no prédio objeto da ação funcionava um terreiro de macumba cujo pai-de-santo era a pessoa despejada. Diante da informação prestada pelo Oficial de Justiça recomendei a ele que requisitasse, caso necessário, o auxílio da Polícia Militar para a execução do despejo.

No dia seguinte Joaquim Gonçalves que servia também de porteiro dos auditórios, informou-me que o aludido pai-de-santo lhe dissera que, se fosse realmente despejado, faria um "trabalho" para me prejudicar e impedir que o despejo fosse concretizado.

No dia marcado para o cumprimento do mandado de despejo, o Oficial de Justiça foi ao local acompanhado de soldados da Polícia Militar e foi ele prontamente cumprido, com lamúrias e ameaças do despejando, que dizia que iria fazer um "serviço" para prejudicar todas as pessoas que contribuíram para o seu despejo. Logo após a ordem judicial ter sido cumprida, o Oficial de Justiça intimou o pai-de-santo para comparecer ao Fórum Lafaiete e receber o material que havia sido retirado do imóvel.

Chegando ao Fórum, foi ele levado a minha presença e no meu gabinete foi muito solícito e gentil, portando-se de forma muito educada, surpreendendo o Joaquim Gonçalves, que ouvira dele várias ameaças, não só a mim, como a todos que trabalharam para que o despejo fosse cumprido. Ao sair do meu gabinete, acompanhado do Joaquim, este se dirigiu ao pai-de-santo e perguntou-lhe: "Você não ia fazer um serviço para prejudicar o Dr. Juiz de Direito?" E ele, cruzando os braços numa grande banana, respondeu: "Eu hein! Este homem tem o corpo fechado!" E saiu gingando o corpo de malandro escolado.

O Coronel Delegado

Quando fui promovido para a comarca de Muriaé, uma belíssima e culta cidade da Zona da Mata mineira, ao tomar posse, fui alertado sobre a ocorrência de vários crimes de morte que estavam sem qualquer solução pelas autoridades policiais encarregadas de investigá-los. Como passavam os dias e nenhum progresso ocorria nas investigações, resolvi oficiar ao Secretário da Segurança, na época o Dr. Mauro Gouvêa, que era oriundo da região, para que enviasse um Delegado Especial. Assim procedi porque os comentários na cidade eram de que os crimes teriam sido cometidos por uma quadrilha chefiada por um Vereador e composta de policiais militares, com a conivência do Delegado de Polícia local.

Algum tempo depois, estava eu em minha casa descansando, depois de um dia de trabalho, quando bateram à porta e a empregada veio me chamar dizendo que um senhor queria me falar. Ao atendê-lo, identificou-se como sendo o Coronel Pedro Ferreira, e que havia sido designado como Delegado Especial, com poderes para fazer as investigações destinadas a esclarecer os homicídios ocorridos na comarca. O Coronel Pedro Ferreira, figura lendária da Polícia Militar, era o policial talhado para esclarecer os crimes, não só pelo respeito que ele impunha, como pelo fato de, entre os suspeitos, figurarem elementos da Polícia Militar.

Ao atendê-lo, entregou-me um ofício do Secretário da Segurança que continha a designação e solicitava que eu desse a ele toda a colaboração para os trabalhos de investigação. Após ler o ofício, informei-lhe que estava pronto a ajudá-lo naquilo que fosse de minha competência, e salientei meu desejo de que os trabalhos investigatórios fossem realizados com absoluta obediência às normas legais. Ao agradecer meu propósito de colaboração, disse que precisava que eu lhe desse, nos pedidos de habeas corpus que porventura fossem requeridos, pelo menos vinte e quatro horas para prestar as informações legais. Eu, então, lhe respondi que não, e em seguida, apesar de constatar em sua fisionomia um aborrecimento, falei que lhe daria 48 horas, antes de decidir qualquer pedido a favor de alguém que fosse preso no curso das investigações, pois a lei me concedia 24 horas para despachar e a ele eu daria 24 horas para informar. E lhe disse ainda que, se houvesse indícios de culpabilidade contra a pessoa presa, que ele requeresse a prisão preventiva, que a deferiria e em conseqüência ficaria prejudicado o pedido liberatório. Esclareço que, naquela época, a lei concedia ao Juiz a prerrogativa de decretar a prisão preventiva, e em alguns casos até impunha tal providência.

Face ao meu procedimento, o Coronel levantou empertigado e declarou: "Doutor, todos estes crimes estão resolvidos". Em pouco tempo, atendendo os requerimentos por ele feitos, decretei a prisão preventiva do Vereador que era tido como chefe da quadrilha, e de um cabo e dois soldados da Polícia Militar. Quando as investigações terminaram e teve início a instrução criminal, fiquei intrigado com a agilidade e a presteza com que o inquérito policial fora concluído e ainda mais surpreso, porque nenhum dos indiciados apresentava qualquer sinal de que houvesse sofrido qualquer tipo de violência física, pois o Coronel era tido como homem muito violento. Quando ele foi se despedir de mim, falei a respeito com ele e lhe disse dos temores que tinha sobre uma eventual violência com qualquer um dos investigados e ele, sorrindo ao despedir-se, disse: "Doutor, tem coisas que fazem a pessoa confessar até aquilo que não fez". E agradecendo a minha colaboração, saiu com um sorriso maroto.

O escrivão mais potente

O Manoel era escrivão do registro civil de Pedra Dourada, distrito de Tombos, e costumava vir à sede da comarca pelo menos uma vez por semana. Era ele tido como mulherengo, e as más línguas diziam que essas viagens, que, segundo ele, destinavam-se a resolver negócios de seu interesse, nada mais eram que desculpas para que pudesse pular a cerca. Tais comentários sempre terminavam com justificativas desse comportamento, em face, segundo aquelas que a conheciam, da feiúra de sua mulher. Diga-se, a bem da verdade, que apesar deste comportamento de impenitente conquistador, diziam que tratava muito bem a esposa e era um excelente pai.

Comentavam ainda que este casamento somente ocorreu porque o tio da moça, que era político de grande prestígio e considerado dono do eleitorado de Pedra Dourada, o havia agraciado com o cartório logo após o casamento.

O Fórum de Tombos era no segundo andar da Rodoviária, e nele havia uma varanda que dava para a principal Praça da cidade, de onde se avistava a saída e chegada dos ônibus.

À tarde, quando os ônibus chegavam, eu, Juiz da Comarca, o Dr. Nuno Alves Martins, Promotor de Justiça, e o Max Berthold Eisenlhor, Escrivão do Cível, ficávamos observando o movimento dos coletivos e as pessoas que chegavam de viagem.

Uma tarde, quando o ônibus de Pedra Dourada chegou, dele desceu o Manoel e logo em seguida a mulher e os filhos do casal. O Dr. Nuno, que era muito irreverente, disse, como se estivesse num monólogo: "Este Manoel é o homem mais potente desta comarca". Como eu havia chegado há pouco tempo na comarca, fiz um olhar de curiosidade, para saber a razão da observação que fora feita, e o Max, que era homem muito observador e de pouca conversa, disse para mim: "Doutor, veja a mulher do Manoel, que está logo atrás dele, e o senhor vai saber a razão dessa afirmação do Dr. Nuno". Ao observar a referida mulher e constatando sua feiúra, dei uma grande gargalhada e disse: "Vocês têm razão, para conseguir fazer filho nela, é preciso que o homem tenha uma potência fora do comum".

A tradução das Catilinárias

Quando cursava o ginasial na Academia de Comércio, em Juiz de Fora, o Latim era uma das matérias obrigatórias do curso e era nosso Professor o Padre Frederico. Da turma, faziam parte o Miguel Vilaça, filho do saudoso e inesquecível médico Dr. João Vilaça, um dos maiores cirurgiões do Brasil naquela época, e o Luís Andrés, filho de outro grande médico, o Dr. Alberto Andrés, que era um conceituado clínico. No nosso colégio, as cadeiras destinadas aos alunos eram compostas de dois lugares e os referidos colegas sentavam um ao lado do outro.

O professor de Latim havia marcado uma prova mensal e o trabalho a ser feito seria a tradução das Catilinárias de Cícero e a parte a ser traduzida era o assassinato de Júlio César, tão bem descrita pelo grande orador e escritor romano. O Miguel era um aluno bem mais estudioso que o Luís, que aproveitava a companhia do colega para solicitar-lhe auxílio nos trabalhos marcados pelos professores. Quando da realização da prova de Latim, o Luís pediu a indispensável ajuda do Miguel para fazer a tradução solicitada e este falou que ele podia copiar o seu trabalho, mas recomendou que não usasse as mesmas palavras que ele estava escrevendo, para que o professor não percebesse que ele havia colado a sua tradução. O Luís, após a aula, informou ao Miguel que ele havia colado, mas tivera o trabalho de modificar várias palavras, para que o Professor não percebesse que ele havia copiado a tradução feita pelo Miguel.

No dia seguinte, quando Padre Frederico, o professor, iniciou a aula de Latim, começou por fazer comentários sobre a prova mensal e após falar sobre os diversos trabalhos dos alunos, passou a comentar a prova do Luís. Com muita ironia, falou sobre a tradução feita, dizendo naquele característico sotaque alemão: "Meus Senhores, temos aqui um aluno muito inteligente e estudioso, mas tão sabido que cria até novos nomes dos dirigentes romanos..." E, concluindo, falou: "Você é tão estudioso que vai levar um zero por colar tão mal, seu estupidus. Meu caro Luís, não é estupidus, é Brutus mesmo, como colocou o Miguel, de quem você colou". A partir daí, o colega Luís passou a ser chamado por Brutus, apelido que o acompanhou a vida inteira.

O soldado que foi reclamar do cabo

Nas comarcas do interior, principalmente quando exerci as funções no início da minha carreira de magistrado, o juiz era sempre a pessoa procurada para resolver os mais diversos problemas dos seus jurisdicionados, o que era feito, na maioria das vezes, por pessoas humildes e da camada mais pobre da população.

Em Tombos, onde iniciei minha carreira, não fugia a este lugar comum, e como não tinha o costume de sair de casa pela manhã, constantemente havia gente a me procurar para trazer seu problema ou procurar um conselho, e eu fazia absoluta questão de atender a todos que me procuravam, pois sabia que poderia trazer um conselho ou resolver um problema para uma pessoa aflita.

Numa dessas manhãs, eu estava a tomar café, quando a empregada me disse que um soldado queria falar comigo sobre um assunto que só eu poderia resolver. Ao atendê-lo, constatei que se tratava de um praça antigo e que servia no destacamento policial da cidade há muitos anos, sendo pessoa muito querida na cidade, mas conhecido pela sua negligência no exercício da árdua, difícil e incompreendida função de policial.

Ao lhe perguntar o que desejava, respondeu-me que precisava fazer uma queixa contra o cabo. O cabo era um policial muito exigente e fiel cumpridor de seus deveres no comando do destacamento, exigindo de seus subordinados igual postura, o que, evidentemente, não era habitual no comportamento do velho praça. Conhecendo o cabo muito bem, porque natural de Juiz de Fora, como eu, e porque havíamos sido colegas de infância, tinha por ele uma grande admiração pela forma exemplar como exercia seu comando, e logo imaginei os motivos da reclamação.

Ao ouvir os reclamos que eram dirigidos exatamente pela forma rígida que o comandante exercia seu mister, disse ao queixoso que não podia interferir no trabalho de seu superior hierárquico e que devia ele se dirigir ao comando do batalhão, que era a autoridade superior ao cabo e capaz de receber suas queixas, caso elas tivessem procedência.

Diante do meu conselho, respondeu: "Doutor, todos dizem aí que o Juiz é a maior autoridade da cidade e que pode prender qualquer um, porque o senhor não pode prender este cabo que vive me perseguindo? Sabe o que eu acho, que o senhor que é amigo dele não quer é tomar providência, muito obrigado". E saiu resmungando, na convicção de que eu, por ser amigo do cabo, não o queria atender.

O cristão que brigou com Cristo

Alexandre era um imigrante sírio que logo depois que veio da terra natal, passou a ganhar a vida como mascate, isto é, comprava mercadorias de atacadistas e as revendia de casa em casa, maneira pela qual a maioria de seus patrícios ganhava a vida e sustentava suas famílias. E tão logo eles conseguiam algum capital ou encontravam ajuda, passavam a exercer o comércio de forma regular.

Com o Alexandre foi assim, tão logo conseguiu um capital, abriu um pequeno negócio na parte baixa da Rua Marechal Deodoro, onde com a maior dificuldade exercitava seu comércio, sempre às voltas com as duplicatas vencidas e o mau humor dos gerentes de bancos, que não se cansavam de exigir o pagamento dos títulos.

Querido pelos moradores da rua, era, no entanto, objeto de brincadeiras e gozações por parte de alguns, que lhe perguntavam como iam os negócios, todos sabendo das dificuldades por que ele passava, e faziam comparação com o progresso comercial do Bernardo, seu vizinho e próspero empresário, e ele sempre em dificuldades e atrasado no cumprimento de suas obrigações comerciais. O Alexandre era católico fervoroso, ao passo que o Bernardo era judeu igualmente fervoroso em sua fé.

Um dia estava na porta da Padaria Central, de propriedade do meu inesquecível avô Francisco, pai de minha mãe, líder inquestionável daquele setor do comércio de Juiz de Fora e figura destacada da colônia italiana local, quando ali chegou o Alexandre, que, com seu sotaque inconfundível, estava sempre a reclamar das dificuldades comerciais que lhe atormentavam. Em determinado momento, alguém lhe perguntou o que estava fazendo para diminuir suas aflições; ele disse que iria à Igreja para rezar e pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo ajuda, para diminuir suas dificuldades financeiras.

Dias mais tarde, um dos gozadores que sempre estavam na porta da padaria perguntou ao Alexandre: "Como é, já foi à Igreja pedir ajuda?" Ao que ele respondeu, mostrando uma grande decepção: "Olha, este Cristo é um ingrato, enquanto ele ajuda o Bernardo, que faz parte dos que o crucificaram, não faz nada por nós, que o seguimos com toda fé. Quer saber de uma coisa, olha para ele..." E deu uma grande banana. Tudo isso foi dito num sotaque característico do imigrante árabe e de uma maneira que fez rir todos aqueles que ali se encontravam!

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